quinta-feira, 9 de junho de 2011

* JANUÁRIO, TRÊS CILINDROS


O sotaque dos açorianos que vivem em Fall River é um deusnosacuda!

O pior deles que eu conheci era do Januário (foto), um açoriano de mais ou menos 35 anos, de aspecto vulgar, magro, cabelos compridos e desgrenhados, olhos azuis, cachaceiro... ele se parecia com uma versão completamente errada do Mel Gibson. O coitado tinha problemas na perna esquerda também. Dizia ele que tinha sido um acidente de moto nos Açores e, por isso, ele “puxava” pela perna. Então eu chamava ele de Três Cilindros, porque andava meio que manquitolando.

O Januário trabalhou comigo de ajudante quando eu estava numa padaria portuguesa (Cunha’s Bakery) como delivery (entregador de pão). Nessa época eu também trabalhava num restaurante americano chamado Lepage’s Seafood and Lounge... mais à frente eu falarei sobre ele. Mas voltando ao Januário...

Ele morava num quartinho dentro da padaria que é do John, ex-patrão e hoje meu amigão, e somente o Januário conhecia todos os caminhos para se chegar nos mercadinhos e restaurantes para os quais o John fornece pão, inclusive o Lepage’s. O John, na verdade João, um português do continente, deu essa colher de chá para o Januário (foto) morar na padaria, porque o coitado era sem eira, nem beira, sem família... era só ele, o cigarro e a cerveja!

Bem... o trabalho começava todos os dias às 4 da manhã, quando a gente carregava a Van da padaria com as caixas de pães, que não tinha nada que ver com os pães que a gente conhece no Brasil. Veja só: tinha o papo-seco, que os americanos chamavam de portuguese roll e lembrava um pouco o nosso pãozinho francês... “Papo-seco”... isso é nome de pão? Pra mim, papo seco são dois caras conversando no deserto do Saara. Tinha também vianinhas, um pão gostoso, de massa supermacia; Stick, compridão como a bengala que vende no Brasil; redondo... pão de hambúrguer; torpiro, pão de hot-dog... e assim por diante. Havia outros, mas não vale à pena ficar relacionando que enche o saco!
 Lá íamos eu e o Januário entregar os pães. No primeiro dia, eu me lembro, me vi maluco pra entender o que esse gajo falava. Já na primeira esquina, ele bateu a mão no meu joelho com força e gritou:

___ Fashtôôôô!

Aqui cabe uma ligeira explicação: nos Estados Unidos as leis de trânsito são rígidas e severas. Quando você chega numa esquina que tem a placa de STOP, você tem de, realmente, parar o carro por 3 segundos antes de continuar. Eles chamam isso de full stop. Não importa a hora, movimento... se não parar corre-se o risco de tomar 100 dólares de multa. Meu amigo Pedro, um brasileiro de Fortaleza, me disse que os policiais de Nova York exigem que, à frente da placa STOP, os carros balancem a “bunda” pelo menos três vezes.

Ou seja, tem de parar mesmo! Eu já tomei três multas aqui na América, não por isso mas... depois eu conto!

Bom... e eu, que tinha passado direto o sinal de STOP, fiquei sem entender o que o catso do Januário me disse com aquele Fashtô!

___ O que você disse? ___ perguntei a ele.

___ Gôraétarr... ___ respondeu ele bravo.

Eu precisei de uns dois ou três dias pra entender essas duas expressões que, na voz do Januário, lembrava muito o sotaque francês. Aliás, quando o Januário falava, a impressão que eu tinha é a de que ele estava falando em francês. Fashtô! nada mais é do que Faça o Stop!, ou seja, pára no sinal! É mole? Gôraétarr... quer dizer... Agora é tarde! Foi o que ele me disse quando eu já tinha passado pelo sinal de Stop sem parar... e o pior é que ele ficava bravo e aí não dava mesmo pra entender nada do que ele falava.

Mas ele logo se acalmava na primeira entrega do dia... isso às 5 horas da manhã, num restaurante-bar conhecido como T.A. Deixávamos um saco de pão com o guarda, que dormia lá para ficar tomando conta do bar. Esse guarda, outro açoriano, era muito amigo do Januário e sempre a essa hora dava pra ele três cervejinhas geladas que o desgraçado colocava debaixo do banco da Van... eu ficava no maior cagaço, porque se a polícia pegasse seria cadeia mesmo... sem choro, nem vela... e a gente ia entregando pão e ele mamando as Budweiser àquela hora da manhã.

Depois da cerveja ele ficava todo alegrão, falando pra caramba e eu não entendendo lhufas do que ele falava. Por exemplo: tinha pães que a gente recolhia dos mercados porque não haviam sido vendidos. Então a gente trocava por pães frescos. Chegava uma hora meio que misturava os pães frescos com os pães amanhecidos e, às vezes, por engano eu pegava um pão velho e misturava com o pão fresco e ele vinha com esta:

___ Êssenôoo! Êsse vácajammm!

A primeira vez que ele falou isso eu pirei, tentando entender... porque eu fiz ele repetir trocentas vezes e, mesmo assim, não fazia a menor idéia do que ele queria dizer. Então eu deixava correr solto e fingia que entendia e tudo bem! Uma semana depois eu decidi dar um basta! Parei a Van, desliguei o motor e ele me fitou os olhinhos meio caídos de cerveja:

___ Uquifôôôô...?

___ Repete... ___ disse eu acendendo um cigarro.

___ Dáumcigáááárr! ___ eu dei um cigarro pra ele.

___ Agora repete aquilo...

___ Quiloquêêê... ___ parecia um francês o desgraçado.

___ Aquilo de Vácajam... o que você quer dizer com aquilo?

Ele não se conformava.

___ Tuindanusááá... uquié vácajam?

___ Não, porra, ainda não sei...

___ Todopãvéi...votapatrásh... p’cebesh?

“Todo pão velho, volta para trás!” Essa eu tinha entendido... mas o catso do vácajam...

___ Percebo... e aí?

___ Quanopã quinuéfresh, vácájam... p’cebesh brazuca? Vácomi... contí... votapatrásh... prapadarí...

Eu meio que entendi, mas ainda estava boiando... “Quando o pão que não é fresco... vácajam... vai comigo, contigo... volta para trás... para a padaria...

___ Tá! Entendi...___ disse eu ___ ... mas e o vácajam? O que é isso?


Ele deu uma respirada funda e com toda impaciência açoriana ele repetiu:

___ VÁCAJAM!!! Vácomí... ___ e bateu no próprio peito ___ ... vácontí ___ e bateu no meu peito ___ P’cebesh? VÁCAJAM!!!

Fiquei olhando pra ele... repetindo baixinho: Vai comigo... vai contigo... vácajam... vaicajam... Puta que o pariu!!!
 ___ Januário!!! Você é um filho da puta, meu!

Saí da Van e, em plena Bedford Street, a 100 metros do Fall River Fire Department, eu gritei:

___ VÁCAJAM... VÁCAJAM... VAI COM A GENTE!!!!

Voltei pra dentro da Van e aquele gajo desgraçado estava rindo!

___ Ficolôôô? ___ perguntou ele com um bafão de cerveja.

Nem respondi. Porra... uma semana inteira pra entender uma expressão... é demais! Vácajam... essa é boa... muito boa! O pior foi questionar isso com ele. Porque se o pão velho volta com a gente, então ele não deveria falar vácajam... e sim voltacajam. Foi aí que eu falei pra ele que, finalmente, tinha entendido o que ele queria dizer: que o pão velho voltacajam!

___ Nuintendi... uquiéiss?

___ O que é isso o quê? ___ perguntei.

___ Voltacajam... uquiéiss?

Aí eu mandei ele se danar... pra não falar outra coisa! Fomos acabar as entregas do dia...

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